Esse é um dos casos mais interessantes já publicados no NEJM, vale a pena a leitura completa aqui ([link](https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMcps2307875?query=featured_nephrology)).
Uma mulher de 43 anos apresentou-se com queixas sugestivas de novo episódio de cistite. Negava febre,
hematúria ou flanco dor. Ela havia relatado sintomas semelhantes diversas vezes nos últimos 2 anos. Cada episódio foi diagnosticado como uma infecção do trato urinário (ITU), sempre sendo identificado por cultura Escherichia coli ou Enterococcus faecalis, sempre com boa resposta com uso de antibióticos.
A paciente possuía histórico médico de cirurgia bariátrica com derivação biliopancreática há 20 anos, possuía também história de nefrolitíase por cálculos de fosfato de cálcio e oxalato de cálcio, além de anemia ferropriva.
Ela já havia sido tratada com administração venosa de gluconato férrico, mas não recebeu infusões nos últimos
6 meses. O único medicamento atualmente em uso era um adesivo multivitamínico transdérmico.
Diante do quadro de ITU recorrente, foi iniciado a investigação padrão.
Não havia na história doença neurológica ou diabetes mellitus que pudessem predispor a paciente a disfunção
autonômica ou retenção urinária. Também não havia evidência de imunossupressão, exceto pela possível desnutrição decorrente do passado de cirurgia bariátrica, o que predispõe a deficiência de micronutrientes.
Desta forma, uma Uro-TC foi realizada a fim de determinar se a nefrolitíase poderia justificar o quadro de
ITU recorrente. A urografia por TC revelou espessamento urotelial e leve dilatação do sistema coletor e ureter esquerdo, com detritos sem realce ao contraste, e que envolviam os cálices renais esquerdos (Figura 1).
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Diante deste achado, foi realizado ureteroscopia flexível que revelou a mucosa da pelve e ureter com placas brancas e irregulares bilateralmente, mais intensa à esquerda. Realizado biópsia do urotélio à esquerda e dos detritos queratináceos. O urotélio vesical estava normal.
Foi realizado avaliação histopatológica do tecido urotelial, sendo identificou extensa metaplasia escamosa queratinizante (Figura 3). Diante do achado de alteração urotelial foi pensado que este seria o substrato anatômico para ITU recorrente.
![](</Dendritos NEJM.webp>)
O caso clínico poderia ser finalizado aqui, certo?
Porém a paciente foi tratada com curso prolongado de doxiciclina (guiado por cultura). Apesar desta terapia, ela persistiu com ITU sintomática causada por E. coli. Repetido ureteroscopia percutânea após 05 meses, sendo evidenciado persistência das extensas placas esbranquiçadas.
Aqui é que o caso fica interessante!
A metaplasia escamosa do urotélio geralmente surge de infecção crônica (por exemplo, esquistossomose) ou
irritação mecânica (por exemplo, um efeito prolongado cateter de duplo J). Se o urotélio for substituído por células escamosas queratinizadas, estas são eliminadas na urina, a condição é chamada metaplasia escamosa descamativa queratinizante. É possível que os insultos combinados de nefrolitíase de repetição e infecção bacteriana contribuíram para metaplasia no sistema coletor renal.
No caso em questão, o único achado histológico definitivo até o momento era de metaplasia escamosa
queratinizante. Porém não existia agentes irritantes ou infecção crônica que justificassem, uma anormalidade epitelial primária merece uma consideração mais aprofundada.
Porém fica difícil de saber se a nefrolitíase era a condição que causou todo esse processo.Uma hipótese
alternativa do caso é que a mucosa descamativa foi a anormalidade estrutural que conferiu uma predisposição para formação das pedras e infecções.
Em investigação de deficiência de micronutrientes, os níveis séricos de cobre, selênio, vitamina B12 e ácido
fólico estavam normais. Porém foi identificado níveis baixos de zinco, vitamina D, vitamina E e vitamina A. O nível de vitamina A foi inferior a 10 μg/dL (faixa normal, 10 a 50 μg/dL).
Sabemos que a vitamina A exerce um papel essencial na integridade epitelial. A deficiência de vitamina A causa
metaplasia escamosa em tecidos epiteliais oculares, respiratórios e cutâneos.
Ao ser questionada, a paciente relatou problemas de dirigir à noite devido à dificuldade visual, porém negou
queixas de prurido, secura da pele, dor abdominal ou esteatorreia.
Diante da grave deficiência de vitamina A foi identificado esta alteração como causa da metaplasia escamosa
urotelial descamativa, e os detritos resultantes no sistema coletor provavelmente foram a causa das ITU recorrentes.
Diante disso, foi iniciado tratamento com altas doses de vitamina A (100.000 UI por via oral diariamente por 4 dias,
depois 50.000 UI por dia), assim como vitamina D oral, cálcio, zinco, suplementos de ferro, e um multivitamínico.
Quatro meses depois, o nível sérico de vitamina A foi de 23 μg/dL, e a ureteroscopia revelou um redução
substancial de placas brancas e descamação mucosa. Ureteroscopia realizada após 15 meses de suplementação de vitamina A. Após 2 anos de tratamento, ela não teve nenhuma ITU subsequente.
Aprendizado com o caso:
Este é um belo caso que ilustra a necessidade de investigação mais ampla de doenças tão comuns. Fica o
aprendizado que, diante de pacientes em pós operatório tardio de cirurgias bariátricas disabsortivas, temos que ter uma maior atenção as carências nutricionais e distúrbios metabólicos.
Muitas vezes temos a impressão de bom estado nutricional apenas características clínicas como adiposidade ou
massa muscular nos pacientes submetidos cirurgia bariátrica, porém tais pacientes muitas vezes têm problemas nutricionais preexistentes. Deficiências comuns como de tiamina, ácido fólico, vitamina B12, ferro, vitamina D, cálcio e vitaminas lipossolúveis devem ser investigadas. Além disso outras deficiências nutricionais como tiamina, vitamina B6, riboflavina, vitamina A, vitamina D e vitamina B12 não podem ser esquecidas.