#### Caso 1: “Doutor, o rim transplantado parou?” – Como abordar a disfunção aguda do enxerto renal
📚 Referência: Michael Kolland et al. Clinical Kidney Journal, 2025 [link]
Imagine a cena: sexta-feira, 15h, a emergência te liga.
“Doutor, temos aqui um paciente transplantado há 3 meses, que chegou com inchaço nas pernas, pressão alta, dor na região do enxerto e creatinina de 3.”
O que você faz?
Essa é uma das ligações mais frequentes (e tensas) que o nefrologista recebe. E a resposta não é simples: rejeição, infecção, obstrução, trombose… e nessa fase, cada minuto conta…
Por onde começar?
A avaliação do enxerto renal com disfunção aguda precisa de agilidade e metodologia. A tríade edema, hipertensão e aumento de creatinina é só a ponta do iceberg. Os autores propõem uma abordagem resumida no mnemônico C.R.A.B.:
* Calcineurin inhibitor toxicity (toxicidade por CNI)
* Rejeição / Recorrência da doença primária
* Anatomia (trombose, estenose, obstrução)
* BK vírus ou outras infecções (CMV, pielonefrite)
Primeiros passos na prática:
1-USG com Doppler focando em:
* Obstrução urinária
* Aumento de volume do enxerto
* Reversão de fluxo diastólico
* Hematomas ou urinomas
2-Dosagem de níveis de CNI (tacrolimo ou ciclosporina)
3-Avaliação laboratorial completa:
* Proteína-C reativa, DHL, leucograma
* Urina tipo I e urocultura
4-Evite biópsia nos seguintes cenários:
* Sinais de ruptura iminente do enxerto (dor intensa, anemia hemolítica, febre, trombocitopenia)
* Suspeita de trombose (anúria súbita + reversão de fluxo no Doppler)
Se não houver contraindicação, biópsia deve ser feita o quanto antes.
“Mas e se for rejeição?”
Se a função está piorando, a biópsia vai demorar ou não está disponível, pode-se iniciar pulsoterapia com metilprednisolona 250–500mg por 3 dias empiricamente. Claro, sempre ponderando riscos e benefícios.
Ah, e nunca esquecer de checar:
* Não adesão à imunossupressão
* Interações medicamentosas (p. ex. antifúngicos que aumentam tacrolimo)
* Doses e absorção (diarreia? vômitos? erro de dose?)
O desfecho do caso?
O paciente tinha um fluxo diastólico diminuído no enxerto, sem obstrução evidente, proteinúria e leucocitúria. Iniciaram antibiótico após coleta de culturas. Com piora da função, recebeu 250mg de prednisona e foi biopsiado na segunda-feira. Diagnóstico: rejeição celular aguda BANFF IIA. Tratado com corticoide oral + antitimócito, com recuperação da função. O paciente havia esquecido várias doses do tacrolimo…
Mensagem final do NefroAtual:
🚨 Disfunção aguda do enxerto exige ação rápida. Faça uma abordagem sistemática, exclua causas anatômicas e infecciosas primeiro, e se necessário, trate empiricamente enquanto prepara a biópsia.
E você, já se deparou com um caso assim na sexta-feira à tarde? Já usou pulsoterapia antes da biópsia? Conta pra gente nos comentários!
#### Caso 2: “Doutor, é para suspender o imunossupressor?” – Como manejar infecção aguda no transplantado renal
Sexta-feira, 15h, e o telefone toca de novo. Dessa vez, é a UTI:
“Doutor, temos aqui uma paciente transplantada há 3 anos, entubada por pneumonia bilateral. Está em uso de tacrolimo, micofenolato e prednisona. Como ajustamos a imunossupressão?”
E aí, o que fazer?
Esse cenário é clássico e angustiante: infecção grave num paciente transplantado. Suspender tudo? Manter o básico? Trocar pra EV? Vamos ao que o artigo propõe de forma prática e pragmática.
Qual o primeiro passo?
A estratégia mais comum é suspender o antimetabólito (MMF/azatioprina) e aumentar a dose de corticoide para 10–25mg/dia, mantendo o inibidor de calcineurina (ICN). Essa conduta parece segura e não aumenta risco de rejeição a curto prazo, como mostrado em estudos recentes com pacientes com COVID-19.
Mas atenção aos perigos escondidos:
📌 Interações medicamentosas com os inibidores de calcineurina:
* Azólicos e macrolídeos (exceto azitro) ↑ TAC
* Rifampicina ↓ TAC
* Vancomicina e aminoglicosídeos → nefro/ototoxicidade
* TMP/SMX → hiperpotassemia
* Estatinas + ciclosporina → risco de rabdomiólise
E quando a paciente não consegue tomar nada por via oral?
É aqui que o jogo muda. Quando há vômitos, distensão abdominal ou absorção comprometida, o ideal é migrar para via parenteral:
* Tacrolimo EV em bomba de infusão contínua (raramente disponível no Brasil)
(Dose ≈ ¼ da oral, exemplo: 1 mg/50mL a 1.3 mL/h para 60kg)
* Metilprednisona IV (ex: dose equivalente a prednisona 25 mg/dia)
Micofenolato EV também pode ser usado, mas é menos comum. Tacrolimo em EV exige ajuste de alvo terapêutico, pois níveis não refletem níveis de vale (trough).
Pensou em patógeno atípico?
Você deve pensar! Especialmente se for início precoce após transplante ou paciente entubado com infiltrado bilateral. Os autores reforçam:
* Solicitar PCR viral (CMV, vírus respiratórios), lavado broncoalveolar, antígenos para Legionella, Pneumocystis, Hantavírus
* BDG e galactomanana se houver suspeita de fungo
E a profilaxia antimicrobiana, tá em dia?
Pneumocystis (P. jirovecii):
* SMX-TMP continua sendo a melhor opção.
* Se intolerância, atovaquona 750mg 2x/dia.
CMV:
* Valganciclovir é o padrão, com dose ajustada pela TFGe.
* Se refratário, pensar em resistência e pedir PCR.
O desfecho da paciente?
A paciente recebeu ceftriaxona e teve MMF suspenso, prednisona aumentada, e passou a usar tacrolimo em infusão contínua. Os exames mostraram pneumococo em sangue e escarro. Não havia sinais de infecção viral ou fúngica. Recuperou-se bem, foi extubada, reintroduziu MMF em dose reduzida e recebeu vacina antipneumocócica no follow-up.
Mensagem final do NefroAtual:
Em transplantado com infecção grave, o equilíbrio entre imunossupressão e infecção é delicado. Reduzir IS sim, mas com critério. Suspender tudo? Quase nunca.
E você, já enfrentou esse dilema? Costuma manter o tacrolimo mesmo na UTI?
#### Caso 3: “Tá tossindo sangue e a creatinina subiu…” – Síndrome pulmão-rim: reconhecer rápido é salvar o paciente
Sexta-feira, 15h (tinha que ser, né?). Você é chamado para ver um senhor de 72 anos com falta de ar, tosse com sangue, febre e creatinina subindo rápido (de 1,1 para 7,2 mg/dL). O plantonista da clínica médica diz:
“Acho que ele tá com infecção pulmonar e fez um quadro séptico com rim agudo. Pode ver?”
Mas algo te incomoda. A história, a queda rápida da função renal e, principalmente, a hemoptise. Será mesmo só sepse?
O que é a tal da “Síndrome pulmão-rim”?
É uma emergência autoimune rara e grave, na qual o paciente apresenta:
* Hemorragia alveolar (dispneia, hipoxemia, hemoptise)
* Glomerulonefrite rapidamente progressiva (hematúria, proteinúria, oligúria, aumento da creatinina)
Os dois principais diagnósticos são:
* Doença anti-membrana basal glomerular (anti-GBM)
* Vasculites ANCA-associadas (principalmente PR3 ou MPO)
*
Mas cuidado com os "mimickers"!
Antes de pensar em imunossupressão ou pulsoterapia, pense nas causas mais comuns que se parecem com PRS:
* Síndrome cardio-renal (IC aguda com congestão)
* Embolia pulmonar (com hemoptise e creatinina elevada por hipoperfusão)
* Pneumonias graves (inclusive por Legionella ou leptospirose)
Se você errar aqui, pode dar corticoide para uma pneumonia com abscesso...
Primeiros passos práticos:
Solicitar de imediato:
* CT de tórax (RX pode ser normal ou subestimar o sangramento alveolar)
* Urina tipo I e sedimento (hematúria dismórfica e cilindros hemáticos)
* Sorologias autoimunes: ANCA, anti-GBM, FAN, complemento
* Procalcitonina e hemoculturas para afastar sepse
* PCR viral e antígenos urinários para Legionella/Pneumo
* Ultrassom renal e ecocardiograma à beira-leito
E o tratamento, começa já?
Sim, se a suspeita for forte e o paciente grave, não dá para esperar a sorologia nem a biópsia.
Se há insuficiência respiratória e creatinina > 3.4mg/dL:
* Pulsoterapia com metilprednisolona (500–1000mg por 3 dias)
* Plasmaférese diária, especialmente se:
Ciclofosfamida ou Rituximabe são iniciados após biópsia ou confirmação sorológica.
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O desfecho do caso?
O paciente evoluiu com hipoxemia, infiltrado bilateral em vidro fosco na TC, urina com acantócitos e proteinúria > 1g/g. ANCA-PR3 retornou positivo, e a biópsia na segunda-feira mostrou glomerulonefrite crescentada pauci-imune. Ele recebeu 3 pulsos de metilprednisolona, plasmaférese por 7 dias, e foi iniciado ciclofosfamida. A função renal e a oxigenação melhoraram.
Mensagem final do NefroAtual:
🚨 Hemoptise + IRA de progressão rápida = PRIMEIRO pensar em síndrome pulmão-rim.
Faça o diagnóstico rápido, inicie pulsoterapia e plasmaférese se necessário, e confirme depois com a biópsia.
E você, já pensou em vasculite num caso assim? Já começou imunossupressão antes da biópsia?