Caso 1: “Doutor, é púrpura trombocitopênica ou é SHUa?” – A corrida contra o tempo na suspeita de MAT
📚 Referência: Michael Kolland et al. Clinical Kidney Journal, 2025 – Kolland M et al. [[link](https://academic.oup.com/ckj/article/18/4/sfaf043/8010844)]
Sexta-feira, 15h. A emergência liga de novo. O paciente da vez:
“Homem de 65 anos, sem comorbidades, chegou com cefaleia e confusão. Hemoglobina 11, plaquetas 20 mil, creatinina 2,3. Parece uma síndrome hemolítica, doutor, você pode avaliar?”
Você corre para ver. O hemograma confirma anemia e plaquetopenia. O LDH está lá em cima, o haptoglobina está suprimido. Está formado o quadro de síndrome hemolítico-urêmica? púrpura trombocitopênica? SHUa?
MAT: um grupo de doenças com risco altíssimo
As microangiopatias trombóticas são caracterizadas por:
* Anemia hemolítica microangiopática (esquistócitos no esfregaço)
* Trombocitopenia
* Lesão de órgão-alvo (principalmente rim e sistema nervoso)
Mas o que mais preocupa é que algumas causas exigem tratamento imediato, como:
* PTT (púrpura trombocitopênica trombótica)
* SHUa (síndrome hemolítico-urêmica atípica)
Etapa 1: confirmar a hemólise microangiopática
Você deve sempre pedir:
* Esfregaço de sangue periférico → presença de ≥ 1% de esquistócitos fortalece o diagnóstico
* LDH elevado, haptoglobina baixa, Coombs direto negativo
* Avaliar lesão de órgãos: confusão, hipertensão, creatinina, enzimas cardíacas
Mas cuidado: outras condições também causam esquistócitos:
📌 Mimickers de MAT:
* Cirrose alcoólica com deficiências vitamínicas
* Sepse com CIVD
* HIT (trombocitopenia induzida por heparina)
* Hantavirose, leptospirose
* Síndrome de Zieve
Etapa 2: é PTT? Use o escore PLASMIC!
Se PTT é uma possibilidade, use o escore PLASMIC para predizer deficiência de ADAMTS13. Se ≥ 6 pontos, trate como PTT até prova em contrário:
✅ Iniciar:
* Plasmaférese urgente (dentro de 4–8 horas)
* Metilprednisolona 10 mg/kg/dia
* Rituximabe em alguns casos
* Caplacizumabe, se disponível (10 mg IV + SC)
Enviar ADAMTS13 antes de iniciar tratamento.
Etapa 3: e se não for PTT? É SHUa?
Se PLASMIC score < 4 ou ADAMTS13 > 10%, pense em SHUa (TMA mediada por complemento). Neste caso:
✅ Iniciar:
* Eculizumabe 900 mg IV
* Profilaxia contra meningococo (ciprofloxacino ou penicilina)
* Vacinação contra meningococo e pneumococo (se possível antes)
Importante: colher amostras (soro e EDTA) para análise genética e complemento antes de iniciar eculizumabe ou plasmaférese!
O desfecho do caso?
O paciente tinha 17‰ de esquistócitos e escore PLASMIC 6. Iniciaram plasmaférese e metilprednisolona. ADAMTS13 retornou 45% (excluindo PTT). A plasmaférese foi suspensa, e foi iniciado eculizumabe com profilaxia antimicrobiana. Posteriormente, detectaram anticorpos anti-Fator H → diagnóstico de SHUa (TMA mediada por complemento).
Mensagem final do NefroAtual:
⚠️ MAT é uma corrida contra o tempo! Se há esquistócitos, plaquetopenia e lesão de órgão, inicie plasmaférese se há chance de ser PTT. Se não for, pense rápido em SHUa e colete amostras antes de tratar.
E você, já usou o PLASMIC score na emergência? Já colheu ADAMTS13 antes da plasmaférese?
Caso 2: “Doutor, a gestante está edemaciada e a creatinina subiu… e agora?”
Sexta-feira, 15h. Chamada da maternidade:
“Gestante de 39 anos, 36 semanas, deu entrada com edema em membros inferiores e PA 210x100. A creatinina, que era 0,5, agora tá 1,5 mg/dL. Proteína na urina aumentou. Pode ver?”
IRA em grávida tira o sono de qualquer nefrologista — não só pela paciente, mas pela vida do bebê também. Mas calma: o segredo está em entender a fisiologia da gestação e pensar com método.
Primeira dica: 1,5mg/dL é MUITO!!
Durante a gravidez, há aumento de filtração glomerular e queda da creatinina para níveis entre 0,4–0,6 mg/dL. Ou seja, qualquer creatinina acima de 0,9 já pode significar lesão renal.
Então sim, 1,5 é preocupante!
Etapa 1: fazer uma investigação direcionada
Avaliar IRA na gravidez exige pensar nas causas usuais (pré-renal, obstrutiva, NTA...), mas também em diagnósticos específicos desse contexto.
Solicite de imediato:
* Avaliação de volemia e pressão arterial
* USG renal e obstétrico
* Proteinúria: relação proteína/creatinina (PCR)
* Função hepática e plaquetas
* Relação sFlt-1/PlGF (se disponível): se >135 → alto risco de pré-eclâmpsia
* Hemograma, LDH, haptoglobina → pensar em TMA
* Complemento e autoanticorpos (se lupus ou doença autoimune)
Etapa 2: pensar em causas obstétricas
Tabela prática:

Etapa 3: quando suspeitar de MAT?
IRA na gestação com hemólise, trombocitopenia e disfunção renal precisa ser avaliada para PTT, SHUa ou HELLP.
🩸 Dica: na gestante, o ADAMTS13 já cai naturalmente, por isso usar o escore PLASMIC perde acurácia. Mesmo assim:
* Se esquistócitos e sintomas neurológicos → iniciar plasmaférese
* ADAMTS13 <10% confirma PTT
* ADAMTS13 >20% e quadro persistente → SHUa → eculizumabe
E quando indicar diálise?
Não existe limiar fixo, mas considere se:
* Ureia > 100–120 mg/dL
* Hipervolemia grave, edema pulmonar
* HiperK+ refratário
* Sintomas urêmicos
A hemodiálise deve ser frequente (6x/semana) e mais longa, com meta de ureia < 35 mg/dL. Use anticoagulação com HBPM e ajuste peso seco com 0,3–0,5 kg/semana.
O desfecho da paciente?
Era uma gestante com esclerose sistêmica, PA 210x100, dispneia e sFlt-1/PlGF > 135. PCR urinária 800 mg/g. LDH e plaquetas normais, sem esquistócitos. Tratada com hidralazina, nifedipino, furosemida e parto de emergência por cesárea. O diagnóstico mais provável foi preeclâmpsia grave associada à crise renal da esclerodermia. Houve melhora progressiva da função renal no pós-parto.
Mensagem final do NefroAtual:
🍼 IRA na gravidez exige atenção dobrada: uma creatinina “normal” pode esconder disfunção renal, e diagnósticos como preeclâmpsia, HELLP e MAT precisam ser pensados rapidamente!
E você, já recebeu uma ligação dessas na sexta à tarde? Sabia que 1,0 de creatinina pode já ser grave na gestação?
Caso 3: “Tá com febre e o cateter tá meio feio…” – Suspeita de infecção em CVC de diálise: o que fazer agora?
📚 Referência: Michael Kolland et al. Clinical Kidney Journal, 2025 – Kolland M et al.
Sexta-feira, 15h. O paciente da hemodiálise chega à emergência.
“É um homem de 45 anos em diálise há 1 ano. Chegou com 38,4°C, pequena secreção no orifício do cateter e potássio 6,5. O pessoal da diálise pediu pra avaliar possível infecção.”
Você olha o orifício do cateter: tem secreção purulenta discreta, vermelhidão, mas o paciente está estável. E agora? Dá para esperar o fim de semana ou precisa agir hoje?
Cuidado: nem toda infecção é igual!
Existem 3 tipos distintos de infecção relacionados a cateter:
1. Infecção de orifício de saída (ESI)
➤ Inflamação abaixo do cuff (vermelhidão, secreção)
2. Infecção do túnel
➤ Inflamação acima do cuff, geralmente mais grave
3. Infecção de corrente sanguínea associada ao cateter
➤ Bacteremia com foco no cateter (febre, calafrios, sem outro foco aparente)
Importante: nem todo ESI leva a bacteremia, e nem toda febre em dialítico é infecção de corrente sanguínea!
Etapa 1: confirmar o diagnóstico com método
Solicite:
* Culturas de sangue periférico e dos dois lumens do cateter
* Avaliar diferencial de tempo para positividade (dTTP) → se o frasco do cateter crescer >2h antes do periférico, sugere infecção de corrente sanguínea
* Swab de secreção do orifício
* Ultrassom do túnel do cateter → presença de líquido indica infecção do túnel
Etapa 2: cateter sai ou fica?
Essa é sempre a dúvida. Regras práticas:
✅ Remover o cateter se:
* Instabilidade hemodinâmica ou sepse
* Infecção do túnel ou orifício com febre
* Patógenos agressivos (S. aureus, Candida, gram-negativos multirresistentes)
* Persistência da febre > 48h mesmo com antibióticos
✅ Manter e tentar salvar o cateter se:
* Paciente estável
* Infecção localizada leve
* Cultura negativa ou com germes pouco agressivos
* Sem sinais sistêmicos
Etapa 3: antibióticos e bloqueios
Tratamento empírico da infecção de corrente sanguínea (vai depender do local e da flora habitual):
* Vancomicina 20 mg/kg IV (ou daptomicina se função renal preservada)
* Ceftazidima ou cefepime 1g pós-diálise (cuidado com neurotoxicidade)
Infecção de orifício de saída sem sinais sistêmicos:
* Cefalexina ou cefazolina 250–500 mg 12/12h
Antibiotic lock (bloqueio do lúmen com antibiótico + heparina):
* Vancomicina + ceftazidima + heparina 250U/mL
E o desfecho?
O paciente estava estável, com hipercalemia. Foi feita hemodiálise urgente. Culturas coletadas (sangue periférico e do cateter), swab do orifício e ultrassom. Iniciaram vancomicina + cefepime. No dia seguinte, culturas positivas para S. aureus sensível à meticilina, com dTTP > 2h → confirmado infecção de corrente sanguínea.
O cateter foi removido, colocaram cateter temporário, e só após 48h de culturas negativas um novo cateter tunelizado foi reimplanteado. Ele fez 21 dias de antibiótico guiado pela cultura.
Mensagem final do NefroAtual:
Febre em paciente com CVC é coisa séria. Coletar as culturas corretamente, avaliar dTTP e decidir sobre remoção imediata ou não pode salvar vidas e evitar complicações como endocardite.
E você, já precisou remover um cateter na sexta à noite? Costuma usar lock de antibiótico nas tentativas de preservação?