**Referência**: Burdmann EA, Andrade LC. Infectious Tropical Diseases That Acutely Affect the Kidneys: What Physicians and Health Care Workers in Nonendemic Countries Should Know. Am J Kidney Dis. 2025 \[**[link](https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S0272-6386\(25\)01028-5)**]
###### **Caso clínico: “é só uma virose da viagem”… será?**
Homem, 38 anos, saudável, médico, volta de 10 dias na Amazônia (pescaria + trilha + banho de rio). **Três dias depois da viagem, inicia**:
• Febre alta (39 °C) de início abrupto
• Cefaleia intensa e dor retro-orbital
• Mialgia importante, principalmente em panturrilhas
• Náuseas, dois episódios de vômitos, pouca ingesta
• Urina escura – “cor de Coca-Cola”
• Queixa de “fôlego curto” ao subir escada
###### **No Pronto Socorro:**
• PA 95/60, FC 112, SatO₂ 95%
• Icterícia leve, conjuntivas hiperemiadas
• Sem sinais de hipervolemia
• Creatinina 3,0 mg/dL (prévia 0,9 em check-up recente), ureia 120 mg/dL
• Na 131, K 3,0, Mg baixo
• Plaquetas 70.000
• EAS: 1+ proteína, leucócitos, 20–30 hemácias/campo
• História de “uma picadinha” em região inguinal com lesão escura que ele achou ser picada de inseto
**Você pensa o quê?**
**Dengue grave?**
**Leptospirose?**
**Malária?**
**Coinfecção?**
E mais importante:
###### **Como o nefrologista deve organizar o raciocínio diante de um quadro infeccioso febril + IRA num paciente que veio de área tropical?**
É exatamente isso que o excelente artigo de Dr. Burdmann e Dra. Lúcia Andrade revisa: dengue, febre amarela, chikungunya, malária, leptospirose e scrub typhus como causas de injúria renal aguda (IRA) em cenários tropicais – e cada vez mais também em países não endêmicos por conta de viagens, migração, mudança climática e expansão de vetores.
**Vamos por partes, sempre com foco no que muda na prática do nefrologista.**
###### **1. O que essas doenças tropicais têm em comum do ponto de vista do nefro?**
O artigo destaca um ponto chave: a apresentação inicial é quase sempre igual: febre aguda + sintomas “de virose”
• Febre alta de início abrupto
• Mialgia, artralgia, cefaleia, dor retro-orbital
• Sintomas gastrointestinais (náuseas, vômitos, diarreia)
• Rash variável
• Conjuntivite ou sufusão conjuntival
• Alterações de coagulação, plaquetopenia
• Hepatite/pancreatite
• Comprometimento pulmonar e cardíaco possíveis
Ou seja: não dá para diferenciar só pelo “primeiro encontro”.
Do ponto de vista renal, a IRA costuma vir por combinação de:
• Hipovolemia/depleção (febre, vômitos, diarreia, vasodilatação)
• SIRS/septicemia
• Rhabdomiólise e/ou hemólise
• Lesão tubular direta por toxinas/inflamação
• Glomerulopatias agudas (GN proliferativa, microangiopatia, etc.)
• Choque e falência de múltiplos órgãos
Como nefrologista, a mensagem é:
Chegou paciente com febre aguda + viagem/contato de risco + creatinina subindo = pensar em doença tropical desde o primeiro dia, pedir testes específicos cedo e não subestimar volume/pressão e uso de nefrotóxicos.

###### ** 2. Arboviroses: dengue, febre amarela e chikungunya**
2.1 Dengue
• Metade da população mundial está em risco de dengue.
• Milhões de casos por ano, com expansão para Américas, Europa, Mediterrâneo e EUA.
**Quando suspeitar?**
Paciente febril vindo de área endêmica com:
• Dor retro-orbital, rash fugaz, mialgia intensa
• Plaquetopenia, hematócrito subindo, dor abdominal
• Sinais de extravasamento capilar (derrame pleural, ascite, hipotensão)
**Rim na dengue: **
• IRA em 2,7–35% dos casos de dengue grave (dados de estudos observacionais)
**• Principais fatores de risco:**
* Forma grave da doença
* Sexo masculino
* DRC prévia, diabetes, hepatite B
* Coinfecção bacteriana
* Rhabdomiólise, sangramento importante
• Lesão predominante: necrose tubular aguda
• Podem ocorrer GN aguda, HUS/TMA, formas colapsantes de GESF e nefropatia por IgA transitória
**Pérolas práticas para o nefro:**
• Dengue com sinais de alarme = alto risco de IRA → monitorar creatinina, diurese, eletrólitos desde o início.
• Manejo de fluidos é delicado:
* Hipovolemia e extravasamento capilar, mas risco de edema pulmonar se exagerar na reposição
* Recomenda-se expansão cuidadosa, reavaliação frequente, sem “baldes” de volume
• Evitar de verdade: AINE, contraste desnecessário, doses altas de diurético em paciente instável
• Na UTI, estratégias que parecem ajudar em crianças graves: albumina precoce em choque refratário, controle de pressão intra-abdominal, uso de TRS prolongada quando indicado.
###### **2.2 Febre amarela – hepato-renal letal**
• Endêmica na África e América do Sul, com surtos a cada 5–7 anos, especialmente em não vacinados.
• Importante mortalidade nas formas graves, chegando a até 60%.
**Clínica típica da forma grave:**
1\. Fase infecciosa: febre, mialgia, náuseas por 2–3 dias
2\. Pequena melhora
3\. Fase tóxica:
* Icterícia intensa
* Coagulopatia, hematêmese
* Oligúria/IRA
* Alta mortalidade
Rim na febre amarela:
• Proteinúria frequente
• IRA em >70% dos casos críticos em algumas coortes; muitos necessitam TRS
• Histologia: NTA em >90%, glomerulonefrite mesangial proliferativa em grande parte
• Lesão multifatorial: tempestade de citocinas, lesão viral direta no rim, hipóxia, hipotensão
**Na prática:**
• Paciente com febre + icterícia + sangramento + IRA vindo de área de YF = tratar como emergência, envolver UTI cedo.
• TRS costuma ser necessária em grande proporção – atenção a hemodinâmica, coagulopatia e risco de sangramento durante diálise.
• Vacina é chave em prevenção – especialmente relevante para pacientes com DRC transplantados ou em viagem.
###### **2.3 Chikungunya – quando a artralgia não é o único problema**
• Epidemias em ondas, milhões de casos nas Américas na última década.
• Diferencial importante para dengue (e muitas vezes coinfecta).
**Pistas clínicas:**
• Febre + artralgia MUITO intensa e incapacitante
• Artrite aguda, frequentemente simétrica
• Pode cronificar, com artralgias por meses/anos
**Rim na chikungunya: **
• Hematúria, proteinúria e aumento de creatinina em 20–45% dos casos em séries
• Biópsias/autópsias:
* Lesão túbulo-intersticial
* GN
* Microangiopatia trombótica
* Vasculites pauci-imunes
• Antígeno viral já foi demonstrado no rim em fase aguda
**Para o nefro:**
• Não subestimar “só virose com dor articular”; pode ter IRA relevante, especialmente em idosos, DRC, diabéticos.
• Monitorar função renal e urina em pacientes com quadro sistêmico mais arrastado.
• Manejo é de suporte; cuidado com AINE para dor articular em paciente com perfusão limítrofe ou DRC.
###### **3. Malária: IRA na parasitemia pesada**
Malária continua sendo gigante em termos globais: 249 milhões de casos e mais de 600.000 mortes em 2022, sobretudo por Plasmodium falciparum na África.
**Quando pensar em malária?**
• Febre em paciente que veio de área endêmica (África, Amazônia, Ásia, áreas rurais da América Latina)
• Paroxismos febris (nem sempre “clássicos”)
• Anemia, plaquetopenia
• Alteração neurológica (malária cerebral), convulsão em criança
• História de quimioprofilaxia inadequada ou ausente
**Rim na malária: **
• IRA é complicação grave, aumenta muito a mortalidade
• Ocorre com P. falciparum, P. vivax e P. knowlesi
• Prevalência de IRA em malária grave:
* \~58% em algumas coortes de falciparum
* \~10–30% em vivax/knowlesi
• Mecanismos:
* Inflamação sistêmica intensa
* Sequestro de hemácias parasitadas na microcirculação renal
* Hemólise maciça + hemoglobinúria
* Vasoconstrição renal mediada por angiotensina II
• Histologia: NTA predominante, com achados de hemólise e obstrução microvascular.
**Manejo nefrológico prático:**
• Fluido com muito respeito: Evitar tanto hipovolemia quanto sobrecarga → excesso de volume aumenta risco de edema pulmonar e mortalidade em malária grave.
• TRS quando indicado (hiperK, acidose, volume refratário, uremia) – idealmente em regime que permita estabilidade hemodinâmica (CRRT ou SLED, se disponível).
• Tratamento antimalárico adequado e precoce (artesunato EV é padrão para forma grave) é o verdadeiro “renoprotetor”.
• Crianças com malária grave e IRA têm risco aumentado de evoluir para DRC no futuro – vale seguimento nefrológico.
###### **4. Leptospirose: a rainha da lesão tubular**
Leptospirose é descrita como talvez a zoonose mais difundida do mundo, altamente prevalente nos trópicos, associada a enchentes, saneamento precário, ocupações de risco e atividades de lazer aquáticas.
Quando desconfiar?
• Febre + mialgia intensa de panturrilhas
• Icterícia com “rubinic jaundice” (aquele amarelo meio avermelhado característico)
• Sufusão conjuntival (olho vermelho sem secreção)
• História de enchente, esgoto, rato, lagoa, rio, triatlo, canoagem, trabalho em esgoto ou lixo
• IRA, hipocalemia, hipomagnesemia, plaquetopenia
Rim na leptospirose – clássico do livro:
• Acometimento renal é “quase universal” nas formas graves
• Lesão dominante: nefrites túbulo-intersticiais agudas e tubulopatia
• Características marcantes:
* IRA muitas vezes não oligúrica
* Fração de excreção de potássio desproporcionalmente elevada
* Hipocalemia e hipomagnesemia importantes
* Proteinúria geralmente \<1 g/dia
* Urina com leucócitos, hemácias, cilindros granulosos
• IRA por leptospirose vai de 10% a >90% dependendo da coorte; em Weil grave, mortalidade muito alta.
**Conduta nefrológica que muda desfecho:**
• Fluidoterapia mais conservadora nas formas com comprometimento pulmonar – muita reposição volumosa pode piorar SDR e hemorragia alveolar.
• TRS precoce faz diferença: estudo brasileiro mostra queda de mortalidade de 66% para 17% com início diário precoce em Weil com creatinina >6 e ureia >200.
• Repor potássio e magnésio com cuidado (perda renal aumentada).
• Antibioticoterapia é recomendada (penicilina/ceftriaxona EV nos graves; doxiciclina/azitro nos leves).
###### **5. Scrub typhus: a “desconhecida” que dá muita IRA**
Scrub typhus (Orientia tsutsugamushi) vem ganhando atenção como causa importante de febre aguda com IRA na Ásia-Pacífico, mas já há relatos em Europa e até achados de Orientia em ácaros nos EUA.
Quadro clínico típico (quando você lembra de procurar):
• Febre de 5–14 dias
• Rash maculopapular troncular que pode se espalhar
• Eschar (lesão negra necrótica, indolor, tipo “cigar burn”) no local da picada – presente só em 7–29%, mas quando você vê é praticamente diagnóstico
• Pode evoluir com ARDS, choque, coagulopatia, meningoencefalite e IRA
**Rim no scrub typhus: **
• Proteinúria e sedimento alterado em até 80%
• IRA em até 60% dos casos em algumas séries
• Fatores de pior prognóstico: idade avançada, DRC prévia, hipoalbuminemia, atraso no início de antibiótico
• Mecanismos: lesão endotelial, isquemia, hemólise, rabdomiólise, lesão direta
**O detalhe que muda tudo:**
• Doxiciclina precoce é game changer – reduz complicações, incluindo IRA.
• Para o nefro, a dica é: viu febre + rash + eschar + IRA em viajante vindo de Ásia/ilhas do Pacífico → sinalizar scrub typhus para a equipe e insistir em iniciar antibiótico específico cedo (mesmo antes da confirmação laboratorial em cenários típicos).
###### **6. E os pacientes com DRC, diálise e transplante?**
O artigo lembra que DRC, diálise e transplante “turbinam” o risco e a gravidade das doenças tropicais:
• Uremia = imunidade alterada → maior risco de formas graves
• Vias de acesso, exposição hospitalar e cateteres → mais infecção secundária
• Dificuldade de manejo de volume e pressão
• Doses de antibióticos têm que ser ajustadas à função renal / TRS
**No paciente transplantado:**
• Apresentações mais atípicas (febre discreta, rash ausente)
• Arboviroses (especialmente dengue e chikungunya) com maior risco de hemorragia, instabilidade, coinfecção
• Febre amarela é especialmente grave, e vacina é contraindicada após transplante (por ser viva); ideal é vacinar antes e evitar viagens a áreas endêmicas se não vacinado.
• Leptospirose pode simular rejeição de enxerto – muitas vezes exige biópsia.
###### **7. O que esse artigo muda na sua prática, no dia a dia?**
Resumindo para vocês:
1\. Sempre perguntar sobre viagem, enchente, banho de rio, roedores, mato, insetos.
2\. Em febre + IRA com contexto epidemiológico, pensar ativamente em doença tropical, não só em sepse bacteriana clássica.
3\. Assumir risco de IRA cedo em:
* Dengue com sinais de alarme ou forma grave
* Malária por falciparum ou vivax com parasitemia importante
* Icterícia + conjuntival “vermelha” + panturrilhas dolorosas (lepto)
* Eschar + febre + rash (scrub typhus)
4\. Ser conservador com AINE, contraste e dose de diurético nesses pacientes.
5\. Ajustar fluido com parcimônia: malária grave, dengue grave e leptospirose com acometimento pulmonar pioram com volume exagerado.
6\. Indicar TRS sem medo quando critérios clássicos são preenchidos, lembrando que na leptospirose grave TRS precoce reduz mortalidade.
7\. Em DRC, diálise e TxR, redobrar prevenção (vacina, repelente, higiene, cuidado com água e alimentos) e manter alto grau de suspeita.
##### **Mensagem final do NefroAtual**
Doenças tropicais com IRA não são mais “coisa exótica” só da Amazônia ou interior do Nordeste: viajantes, migrantes e mudança climática estão trazendo essas entidades para qualquer centro urbano, inclusive fora do Brasil. O nefrologista que não pensa nelas perde tempo na investigação, subestima o risco de IRA e atrasa intervenções que salvam rim e vida.
Mais do que decorar nomes e vetores, o recado do artigo é:
Febre aguda + contexto epidemiológico de exposição + creatinina subindo = ligar o modo “doença tropical” imediatamente, organizar a investigação específica e ajustar o manejo hemodinâmico e dialítico com esse cenário em mente.
E aí, me conta: você já tinha o hábito de incluir dengue, malária, leptospirose, febre amarela, chikungunya e scrub typhus no seu “checklist mental” de IRA infecciosa? Já pegou algum caso assim no seu plantão que só foi fechado depois com diagnóstico de doença tropical?