Hematúria microscópica, silenciosa, subestimada — a hematúria acompanha a nefropatia por IgA (NIgA) desde sua primeira descrição clínica. Por décadas, porém, ela foi tratada apenas como um “achado acessório”, apagada pela força preditiva da proteinúria. Mas estudos recentes mostram que esse marcador barato, simples e cotidiano do consultório nefrológico pode ser um dos mais importantes biomarcadores de atividade inflamatória, progressão e resposta terapêutica na NIgA.
📚 **Referência**: Zand L, Fervenza FC, Coppo R. Microscopic hematuria as a risk factor for IgAN progression. Clin Kidney J. 2023 \[**[link](https://academic.oup.com/ckj/article/16/Supplement_2/ii19/7458389?searchresult=1)**]
##### **1. Por que a hematúria importa?**
A visão moderna da NIgANentende a doença como um processo inflamatório dirigido por imunocomplexos IgA1-IgG que ativam o complemento, promovem dano glomerular e levam à passagem de eritrócitos para o espaço urinário.
A hematúria não é apenas um marcador de ruptura da barreira glomerular — ela é parte do processo inflamatório ativo que promove dano progressivo.
Estudos experimentais mostraram:
* Depósitos mesangiais isolados de IgA não causam hematuria.
* Hematuria aparece somente quando há co-deposição de IgG e C3, ativando potentemente vias inflamatórias.
* Reduzir deposição de C3 reduz hematuria (modelos experimentais com IgA1 protease).
**O raciocínio clínico muda: sem hematuria → menor inflamação ativa → menor risco de progressão, mesmo com proteinúria semelhante.**
###### **2. O que a micro-hematúria revela sobre atividade histológica?**
A literatura é consistente: micro-hematúria está fortemente associada a lesões inflamatórias na biópsia, especialmente:
* Crescentes (C1/C2)
* Hipercelularidade Endocpilar (E1)
* Hipercelularidade Mesangial (M1)
**Principais achados:**
* Pacientes com ≥21–30 hemácias/campo têm o risco 4x maiores de apresentar crescentes.
* Em alguns estudos, 100% dos pacientes com E1 tinham hematuria significativa.
* Hematuria (média ao longo do tempo) correlaciona-se ainda mais fortemente com lesões ativas do que o exame pontual.
📌 Se há hematuria persistente, é muito mais provável que a NIgA ainda esteja em fase inflamatória ativa.
###### **3. Hematúria e risco de progressão renal**
Um insight crítico do artigo: quanto maior o grau e duração da hematúria, maior o risco de progressão para DRC terminal, independentemente da proteinúria.
**Principais evidências:**
* Hematuria persistente aumenta o risco de ESRD em 87% (meta-análise).
* Cada incremento na hematuria está associado à queda anual de eGFR.
* Mesmo hematuria leve (1–29/campo) já aumenta o risco de perda renal em longo prazo.
* Estudos europeus e asiáticos mostram aumento de 3 a 5 vezes no risco de ESRD quando a hematuria se mantém ao longo dos anos.
⚠️ A proteinúria sozinha não conta a história completa.
Proteinúria sem hematuria tem risco muito menor de progressão.
###### **4. Hematúria como biomarcador de resposta terapêutica**
**Mudança de paradigma:**
* Remissão de hematuria → melhor prognóstico renal (queda anual da TFGe praticamente zera quando a hematuria desaparece).
* Imunossupressão (especialmente corticosteroides) reduz hematuria mais rapidamente em pacientes com doença inflamatória ativa.
* Regimes como tonsilectomia + pulsoterapia parecem especialmente eficazes quando a hematuria é intensa.
* Bloqueio do eixo renina angiotensina aldosterona reduz risco de proteinúria e também aumenta taxas de remissão de hematuria — ponto crucial para pacientes com proteinúria baixa mas hematuria persistente.
🔬 Hematuria desaparece → inflamação desaparece → risco reduz drasticamente.
###### **5. Implicações práticas para o nefrologista (as que mudam conduta) 🔥**
Avalie sistematicamente a micro-hematúria, sempre.
###### **Checklist prático:**
1. Não confie apenas em uma amostra isolada.
2. Use Time-Averaged Hematuria (tempo com hematúria persistente).
3. Microscopias repetidas (≥3 em 6 meses).
4. Associar achados a proteinúria, MEST-C e TFGe.
5. Hematuria persistente → forte sugestão de atividade inflamatória.
6. Hematuria alta + proteinúria moderada (0,75–1g) pode indicar necessidade de imunossupressão.
7. Hematuria persistente após 3 anos → risco aumentado, mesmo com proteinúria controlada.
8. Ausência de hematuria com proteinúria estável → fenótipo mais esclerótico, menos inflamatório; imunossupressão provavelmente pouco benéfica.
###### **Ponto de ouro:**
A distinção NIgA com proteinúria isolada vs IgAN com proteinúria + hematuria deve entrar na rotina de decisão terapêutica.
###### **6. Como medir? Exame de fita não basta.**
**O artigo recomenda:**
* Microscopia manual por profissional experiente (ideal).
* Automated urine particle analyzer (UF-5000) → altamente sensível e reprodutível.
* Pequenas hemácias dismórficas e lisadas correlacionam-se fortemente com hematuria glomerular.
**Categorias sugeridas:**
* Leve: 3–10 RBC/HPF
* Moderada: 11–20
* Significativa: >21–30
* Grave: >50
###### **7. Conclusão prática**
A hematúria deixou de ser coadjuvante e se tornou um biomarcador central de atividade inflamatória na IgAN. Ela:
* Reflete inflamação ativa (crescentes, E1, M1)
* Prediz pior evolução renal
* Indica resposta ao tratamento
* Deve entrar na decisão terapêutica
* Deve ser critério de inclusão em ensaios clínicos
* Deve ser monitorizada longitudinalmente
O entendimento é de que é hora de recolocar a hematúria no centro da avaliação da IgAN.
Barata, acessível, ignorada — e extremamente poderosa.