📚 Referência: Leung N, et al. N Engl J Med. 2021;384:1931–41. [[link](https://www.nejm.org/doi/10.1056/NEJMra1810907)] 🔗
A presença de paraproteínas monoclonais no sangue sempre foi associada a neoplasias hematológicas (ex: mieloma ou LLC). No entanto, ficou evidente que clones plasmocitários ou de células B, mesmo com carga tumoral baixa, podem causar lesões renais. Surge então o conceito de MGRS (Monoclonal Gammopathy of Renal Significance), que revolucionou a forma como avaliamos esses casos.
###### 🔬 O que é MGRS?
MGRS se refere a doenças clonais de plasmócitos ou células B que não preenchem critérios para mieloma ou outras neoplasias hematológicas, mas produzem imunoglobulinas monoclonais nefrotóxicas que causam dano renal direto (geralmente compartimento glomerular). Isso inclui pacientes com MGUS ou mieloma indolente que não seriam tratados pela hematologia, mas apresentam lesões renais progressivas, potencialmente irreversíveis.
###### 🧪 Como a paraproteína causa lesão renal?
As imunoglobulinas monoclonais têm propriedades bioquímicas específicas (ex: carga positiva, glicação anormal, resistência à degradação) que induzem diferentes padrões de lesão renal (seja causando deposição ou desencadeando inflamação (Figura 1):
📌 Depósitos organizados
* Fibrilas: AL amiloidose
* Microtúbulos: imunotactoide GN, crioglobulinemia
* Cristais: light-chain proximal tubulopathy, crystalglobulinemia
📌 Depósitos não organizados
* MIDD (doença por depósito de cadeia leve ou pesada)
* PGNMID (glomerulonefrite proliferativa com depósito monoclonal)
📌 Sem depósito visível
* Glomerulopatia do C3 associada a paraproteína
* Microangiopatia trombótica com paraproteína
* Lesões mediadas por autoanticorpos contra fator H ou colágeno IV
Figura 1. Mecanismos de toxicidade renal e principais manifestações das MGRS por imunoglobulinas monoclonais
###### 🚨 O problema do diagnóstico tardio
Muitos pacientes com MGRS são rotulados como MGUS ou doenças "idiopáticas" porque não têm carga tumoral suficiente para desenvolverem mieloma múltiplo. O problema: a paraproteína é nefrotóxica/imunogênica mesmo em baixa concentração. Isso levava à não indicação de tratamento e, consequentemente, dano renal irreversível.
⚠️ A biópsia renal é essencial para identificar a lesão típica de MGRS.
📌 Dica prática: em pacientes com MGUS e qualquer uma das seguintes alterações, considere fortemente biópsia renal:
1. Proteinúria >1,5 g/dia
2. Hematúria microscópica
3. Queda acelerada da função renal
4. Relação anormal de cadeias leves livres no soro
###### 📖 Como tratar MGRS?
A conduta é muito diferente do que habitualmente fazemos nas doenças imunomediadas.
✅ Não usar imunossupressão inespecífica como glicocorticoides, ciclofosfamida ou micofenolato; os estudos mostram pior resposta renal com essas estratégias em MGRS.
🔑 O tratamento deve ser direcionado ao clone hematológico causador, com as mesmas drogas usadas para mieloma ou linfoma, mesmo sem carga tumoral alta.
💊 Terapia dirigida ao clone:
Clones plasmocitários:
* Bortezomibe (± dexametasona, ± ciclofosfamida)
* Daratumumabe (anti-CD38), com eficácia promissora para AL, MIDD e PGNMID
* Transplante autólogo de medula (em casos selecionados de MIDD)
Clones de células B (ex: CLL ou LPL):
* Rituximabe-based (± bendamustina ou ibrutinibe)
* Obinutuzumabe ou novos inibidores de BTK para casos refratários
###### 📈 Quais os objetivos do tratamento?
🎯 O alvo não é apenas hematológico, mas principalmente preservar função renal e evitar recidiva após transplante.
📌 Meta hematológica mínima gerar proteção renal:
* Redução >90% da cadeia leve envolvida OU
* Diferença <4 mg/dL entre cadeias livres
📌 Meta ideal:
* Resposta completa (sem doença residual mínima)
* Cadeia leve envolvida <2 mg/dL
*
###### ⚠️ E o transplante renal?
Pacientes com MGRS podem ser candidatos a transplante renal, mas a taxa de recidiva é alta (>90% para PGNMID) se não houver controle clonal prévio.
✅ Recomendação: tratar até alcançar pelo menos “very good partial response” hematológica antes do transplante. Exceção: pacientes com AL amiloidose podem ter bons resultados mesmo com resposta parcial após o transplante, desde que a doença esteja controlada.
###### 📌 Lições práticas para o nefrologista
1. Nem toda MGUS é inofensiva para o rim
2. Biópsia renal é indispensável em pacientes com paraproteína e alteração renal
3. A resposta renal depende da resposta hematológica dirigida ao clone
4. Imunossupressores convencionais não funcionam em MGRS
5. Terapia precoce pode fazer toda a diferença na preservação da função renal e evitar hemodiálise ou recidiva pós-transplante