A creatinina sérica continua sendo o marcador mais utilizado para estimar a TFG, porém sofre influência significativa de fatores não relacionados à filtração glomerular (massa muscular, dieta, fármacos, inflamação).
A cistatina C (CysC) surge como marcador complementar, com menor dependência da massa muscular e maior valor prognóstico para eventos renais e cardiovasculares.
O artigo **Advantages, Limitations, and Clinical Considerations in Using Cystatin C to Estimate GFR,** **Kidney 360, 2022** \[**[link](https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC9717651/pdf/KID.0003202022.pdf)**], revisa evidências e apresenta casos clínicos clássicos onde o uso isolado da creatinina levaria a decisões clínicas equivocadas.
###### **1-Relembrando a fisiologia da Cistatina C:**
1. Produzida por todas as células nucleadas
2. Livremente filtrada no glomérulo
3. Metabolizada no túbulo proximal
4. Menor interferência de massa muscular e dieta
5. Influenciada por inflamação, obesidade, distúrbios tireoidianos e uso de corticoide

###### **2-Quais fatores podem alterar a geração de Creatinina?**

###### **3-Quem é mais fidedigna na estimativa da TFG, creatinina ou cistatina C? DEPENDE!**
Figura com reclassificação da DRC de acordo com TFGe por Creatinina ou Cistatina C
##### Vamos entender como o uso da Cistatina C pode ser útil na prática clínica!
**🟩 CASO 1 — TFGe reduzida pela creatinina, função renal preservada**
Uma Mulher de 75 anos, portadora de HAS de longa data, DAC com revascularizações prévias, HIV controlado e atleta amadora (maratonista). Fez troca recente da TARV, em uso recente de dolutegravir + rilpivirina.
**Exames**:
* Creatinina: 1,6 mg/dL → TFGe-creatinina ≈ 30–33 ml/min/1,73 m²
* Cistatina C: 1,3 mg/L → TFGe-cistatina C ≈ 48 ml/min/1,73 m²
**Interpretação nefrológica**: A creatinina encontra-se falsamente elevada, por dois mecanismos principais:
* Aumento da produção de creatinina (alta massa muscular + exercício intenso)
* Redução da secreção tubular de creatinina induzida por dolutegravir e rilpivirina
👉 A função glomerular real está mais bem representada pela TFGe baseada em cistatina C.
###### **Qual o impacto clínico:**
1. Evita diagnóstico incorreto de DRC avançada
2. Evita encaminhamento desnecessário à nefrologia
3. Evita ansiedade do paciente e exames adicionais
**Lição prática**: Em pacientes fisicamente ativos ou em uso de drogas que interferem na secreção tubular, a TFGe-creatinina pode subestimar a função renal real.
🟩 CASO 2 — Creatinina extremamente elevada sem queda real da TFG
Paciente de 60 anos, sem DRC prévia, internado após acidente automobilístico, evolui para rabdomiólise grave, CPK > 20.000 U/L, porém mantém diurese preservada e com distúrbios eletrolíticos mínimos (fósforo elevado)
**Exames:**
* Creatinina: 7,1 mg/dL → TFGe-creatinina extremamente reduzida
* Cistatina C: 1,2 mg/L → TFGe-cistatina C preservada
**Dúvida clínica**: “Iniciar diálise devido à piora da função renal?”
###### **Interpretação nefrológica:**
A creatinina reflete liberação maciça muscular, não necessariamente queda da filtração glomerular
A cistatina C:
* Não depende de massa muscular
* Atinge estado de equilíbrio mais rápido
* Reflete melhor a TFG real nesse cenário
👉 Não havia indicação dialítica naquele momento.
###### **Impacto clínico:**
1. Evita início indevido de diálise
2. Evita intervenções invasivas
3. Permite acompanhamento conservador seguro
###### **Lição prática:**
Na rabdomiólise, creatinina NÃO é marcador confiável de TFG. A cistatina C pode ser decisiva na tomada de decisão.
**🟩 CASO 3 — Creatinina normal, TFG superestimada e risco terapêutico**
Uma paciente de 67 anos, tabagista, com hipotireoidismo em tratamento e evoluindo com perda ponderal significativa. Diagnóstico recente de carcinoma urotelial de bexiga
**Exames**:
* Creatinina: 0,9 mg/dL → TFGe-creatinina ≈ 70 ml/min/1,73 m²
* Cistatina C: 1,7 mg/L → TFGe-cistatina C ≈ 35 ml/min/1,73 m²
Contexto terapêutico: Cisplatina indicada (usar com cautela se ClCr \< 60 ml/min)
###### **Interpretação nefrológica:**
1. Creatinina subestima a DRC devido à:
2. Baixa produção muscular (perda de peso, câncer)
3. Cistatina C pode estar superestimando o dano (tabagismo, disfunção tireoidiana)
👉 Grande discrepância entre métodos (> 30 ml/min).
**Conduta recomendada:**
* Não confiar exclusivamente em nenhum marcador isolado
* Solicitar TFG medida (mGFR) com marcador exógeno (iohexol ou iotalamato)
**Impacto clínico:**
1. Evita quimioterapia potencialmente nefrotóxica em paciente inelegível
2. Evita subtratamento oncológico injustificado
**Lição prática**: Quando há grande discordância entre TFGe-creatinina e TFGe-cistatina C, a decisão deve ser individualizada e, se necessário, baseada em TFG medida.
🟦 MENSAGEM PRÁTICA PARA NÓS NEFROLOGISTAS
✔ A creatinina continua útil
✔ A cistatina C não substitui, mas complementa
✔ Discordâncias carregam valor prognóstico e clínico
✔ Decisões críticas exigem marcadores corretos
👉 Pensar em TFGe ≠ pensar apenas em creatinina.